Pesquisadores brasileiros demonstram como a separação e identificação de moléculas espelhadas pode ser crucial para o sucesso na ativação de proteínas ligadas à autofagia, a reciclagem celular.
Uma etapa importante da pesquisa em química medicinal é encontrar moléculas que interajam diretamente com proteínas-alvos de forma potente e inequívoca, provocando uma cadeia de reações na célula. Um estudo publicado recentemente na revista ChemBioChem por pesquisadores da Unicamp, IF-SP, UFSCar, UNC e UNIFESP mostrou que não basta encontrar uma boa molécula, mas também verificar se ela é um enantiômero, ou seja, se ela tem outras versões espelhadas, seja no plano horizontal ou vertical ou ainda, em ambos.
Os autores mostraram que, no caso da proteína da membrana celular do lisossomo – a organela responsável pela reciclagem celular – o sucesso da relação molécula-proteína vai depender não apenas da molécula, mas de qual versão ela está interagindo. Esta informação acelera a otimização da busca do melhor composto para estudar a proteína-alvo envolvida na reciclagem celular e cujo mau funcionamento está relacionado à doenças como a mucolipidose.
A proteína em questão é a TRPML1 (Transient receptor potential mucolipin 1 – saiba mais aqui) que está localizada na membrana celular do lisossomo. A célula tem vários lisossomos. Eles têm formato de vesícula e são responsáveis por “reciclar” os componentes da célula. Ao encontrar resíduos no citoplasma, a vesícula os envolve e os lança para seu interior onde serão digeridos, por um processo chamado de autofagia. Isso envolve a ativação e desativação de proteínas que estão na membrana do lisossomo. O mau funcionamento destas proteínas acarretam em doenças como mucolipidose, tumores e maior suscetibilidade a infecções.
Para se ter uma ideia da dimensão desta descoberta, em novembro de 2022, a empresa Casma Therapeutics, que trabalha na descoberta de novos fármacos, recebeu um investimento de 46 milhões de dólares para o desenvolvimento de medicamentos focados na autofagia. A empresa Merck, que atua no setor de ciência e tecnologia, investiu mais de 1 bilhão de dólares na compra de duas empresas focadas no desenvolvimento de ativadores da proteína TRPML1. Em 2019, a Merck adquiriu a Calporta por $576 milhões e, em 2023, a Caraway Therapeutics por $610 milhões.
Os pesquisadores já sabiam que a molécula ML-SA1 (Mucolipin Synthetic Agonist 1) era capaz de interagir com a proteína de membrana para ativá-la. “Notamos que apenas parte das moléculas conseguia interagir e ativar com sucesso a proteína-alvo”, explica Micael Cunha, autor do estudo e bolsista de pós-doutorado da FAPESP. A resposta veio após os pesquisadores estabelecerem um protocolo de separação dos enantiômeros S e R da ML-SA1 e constatarem que apenas uma delas tem efeito na proteína, ainda que ambas compartilhem a mesma estrutura e o mesmo número de átomos.
Na prática, essa informação é de extrema importância para os estudos baseados em alvo, pois revela que parte das moléculas usadas para ativar a TRPML1 estão na verdade competindo pelo espaço de encaixe na proteína com as moléculas que realmente a ativam. Quando a forma (S) é testada isoladamente, a ativação é dez vezes maior do que o composto em mistura, enquanto a forma (R) não possui atividade. Segundo os resultados obtidos pelos pesquisadores, o enantiômero (R)-ML-SA1 se liga no mesmo local que o (S), porém sem efeito. Seria como tentar vestir um calçado esquerdo no pé direito.
Separação das moléculas
Antes de testar as moléculas do tipo S e R isoladamente, foi preciso separá-las. Bruno Amaral, pesquisador do CQMED que trabalhou na separação dos enantiômeros utilizados na pesquisa, explica que foi necessário estabelecer um novo protocolo para conseguir uma separação ideal, testando diferentes temperaturas, colunas de cromatografia e solventes. A colaboração com a professora Quezia Cass, do Núcleo de Pesquisa em Cromatografia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), possibilitou o desenvolvimento do protocolo de separação baseado no seu expertise e equipamentos específicos para separações de moléculas enantiômeras. “Conseguimos separar as moléculas em baixas temperaturas e usando etanol como solvente, o que torna o processo mais sustentável, pois não usa solventes tóxicos ou que gerem descartes perigosos”, afirma Bruno.
Depois de separadas, os pesquisadores definiram qual era a versão S e R. “Quando eu consegui uma boa separação, só sabíamos que eram formas diferentes, mas não era possível identificar qual era a forma (S) e qual era a (R) por ser uma separação inédita e não ter informações suficientes na literatura para comparar”, explica Amaral, “cruzamos dados teóricos e experimentais para identificar os enantiômeros e a colaboração do professor João Batista, da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), foi fundamental”, completa.
“As colaborações com diferentes universidades e laboratórios são fundamentais para conseguirmos avançar com a ciência de forma complementar”, comenta Katlin Massirer, coordenadora do INCT de Química Aberta que liderou o estudo.
Apesar da boa permeabilidade e solubilidade adequada, a molécula (S)-ML-SA1 apresenta baixa estabilidade para ser usada como um medicamento para induzir a autofagia, suas aplicações atualmente se restringem ao campo das pesquisas. No entanto, os novos resultados apresentados sobre ela podem fornecer informações relevantes para o desenvolvimento de medicamentos estáveis, que sirvam para induzir o processo de autofagia em seres humanos. Medicamentos para essa finalidade apresentam grande potencial terapêutico e econômico.
Iguais, mas diferentes
Enantiômeros são moléculas com a mesma estrutura e o mesmo número de átomos, porém desviam o plano da luz polarizada para lados diferentes. Essa diferença é fundamental do ponto de vista químico e tem efeitos relevantes no funcionamento celular. Eles já são conhecidos pela ciência desde meados do século 19 e suas aplicações já são exploradas pela indústria farmacêutica e alimentícia.
O aspartame, um dos adoçantes alimentícios mais populares, pode apresentar 4 enantiômeros em sua conformação final (S,S), (S,R), (R,R), e (R,S), mas apenas a forma (S,S)-aspartame possui sabor adocicado. O limoneno é outro exemplo de como diferentes enantiômeros podem atuar, este terpeno é naturalmente produzido por várias plantas, mas seu cheiro é determinado por sua conformação enantiômerica, enquanto o (R)-limoneno possui odor de laranja o (S)-limoneno apresenta odor de pinho.
Um trágico exemplo envolvendo enantiômeros foi o caso do medicamento talidomida. Em sua forma (R) a talidomida atua como um sedativo e por um tempo foi amplamente receitada para tratar enjoos de gestantes. O problema é que a forma (S) da talidomida causa a má formação e até mesmo a morte de fetos durante a gestação, o que só foi descoberto depois de muitas vítimas já terem sofrido as consequências do seu uso. O caso da talidomida demonstra a importância de se avaliar cuidadosamente as diferenças funcionais e toxicológicas dos enantiômeros presentes nos compostos antes de serem comercializados como medicamentos.
O estudo teve apoio da FAPESP por meio de quatro iniciativas: um projeto temático, um auxílio pesquisa regular, um PITE e uma bolsa de pós-doutorado. Além destes, a pesquisa também contou com apoio CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e do Núcleo de Computação Científica da (NCC/GridUNESP) da UNESP.
Para saber mais:
Cunha, M. R., Do Amaral, B. S., Takarada, J. E., Valderrama, G. V., Batista, A. N. L., Batista, J. M., Cass, Q. B., Couñago, R. M., & Massirer, K. B. (2024). ( S )‐ML‐SA1 Activates Autophagy via TRPML1‐TFEB Pathway. ChemBioChem. https://doi.org/10.1002/cbic.202400506
Imagem: Micael Cunha