O processo de produção de proteínas em neurônios é regulado dinamicamente.
Cientistas do Centro de Química Medicinal da Unicamp (CQMED) avançaram no entendimento do processo de regulação da produção de proteínas que ocorre em neurônios durante seu desenvolvimento. Por serem células muito compridos e ricas em prolongamentos (dendritos) em suas extremidades, os neurônios desenvolveram mecanismos próprios para regular a demanda de proteínas em diferentes partes da célula. Entender quais genes e vias são regulados por estes mecanismos ajuda a compreender desde processos básicos como o funcionamento da memória como causas de doenças neurodegenerativas. O artigo foi publicado no periódico Molecular Brain.
Os autores do estudo investigaram o desenvolvimento dos neurônios humanos pela perspectiva da regulação da tradução dos mRNAs. De maneira bem simplificada, o processo de produção de proteína acontece da seguinte maneira: o DNA carrega os genes, que são sequencias de DNA que contém instruções. A instrução contida em um gene é copiada em RNA mensageiros, os quais são lidos em organelas celulares conhecidas como ribossomos. Por meio da leitura e decodificação das instruções presentes nos mRNAs, sequências de aminoácidos são adicionadas em série para formar proteínas, em um processo conhecido por tradução. Qualquer erro neste processo pode ter consequências catastróficas para o organismo. Por isso, ao longo da evolução da vida, várias camadas de controle da expressão dos genes em proteínas foram sendo desenvolvidas, seja para um organismo unicelular, como um protozoário, seja para uma célula especializada como o neurônio humano.
De acordo com Mario Bengtson, professor do Instituto de Biologia da Unicamp, pesquisador principal do CQMED e autor do estudo, o trabalho desenvolvido pelo grupo fornece evidências de que a regulação da tradução de proteínas em neurônios, desempenha papeis importantes no desenvolvimento e na biologia da célula. Entre eles, o controle da ativação e desativação de genes relacionados ao metabolismo, às sinapses e conformação estrutural do neurônio (citoesqueleto).
“Nossos resultados mostram que a tradução do mRNA em proteínas no neurônio é controlada dinamicamente em genes com papéis fundamentais na regulação do citoesqueleto, que está relacionado a formação e direcionamento dos axônios para sua posição final no cérebro e a formação de circuitos sinápticos nos os dendritos”, explica Bengtson.
Esta descoberta ajuda a compreender, por exemplo, como neurônios longos – como é o caso de neurônios que saem da espinha dorsal e chegam no pé – regulam processos dinâmicos da célula em suas partes distantes. “No caso de neurônios de um metro ou mais, estima-se que levaria aproximadamente 12 dias para o transporte de proteína sintetizada no corpo celular do neurônio chegar a sítios neuronais distais. Portanto, a síntese proteica local pode gerenciar melhor a necessidade de mudanças rápidas no conjunto de proteínas dos processos axonais”, ilustra o autor. Outro exemplo são os neurônios do córtex cerebral que precisam gerenciar individualmente em média mil conexões dendríticas independentemente e que são modificadas constantemente em decorrência de processos de aprendizagem e de armazenagem de memórias.
Uma das formas que o neurônio lida com isso é transportar tanto ribossomos quanto RNAs para o local da terminação e apenas diante de estímulo iniciar a tradução de proteínas. “Neste caso, seria uma forma de controle traducional, porque o RNA não está sendo traduzido necessariamente, mas ele pode ser ativado em caso de necessidade lá na extremidade”, complementa Bengtson. “Neurônios precisam de um controle traducional muito apurado para funcionar desta forma”, pontua o autor.
Para entender estes processos os pesquisadores acompanharam o processo de transformação de células neuroprogenitoras em neurônios. Células neuroprogenitoras são células neurais primitivas capazes de se diferenciar em células do sistema nervoso. Neste experimento elas foram cultivadas em laboratório e induzidas a se transformar em neurônios.
Em seguida os pesquisadores construíram dois tipos de biblioteca de sequenciamento de RNAs: uma com todos os RNAs expressos na célula e a outra apenas com os RNAs associados aos ribossomos, que de fato estão sendo traduzidos em proteínas. Esta análise foi feita durante diferentes etapas da diferenciação celular. A comparação entre as bibliotecas nas diferentes etapas de diferenciação neuronal permite identificar genes cuja taxa de tradução muda (aumenta ou diminuí) nos diferentes estágios de diferenciação.
“Identificamos os grupos de genes que estavam sendo controlados traducionalmente e, por meio de ferramentas de bioinformática, verificamos que estão relacionados diretamente a regulação da sinapse, do metabolismo neuronal, da extensão de neuritos e migração celular”, esclarece Bengtson.
Estes processos celulares são a base, por exemplo, da memória. A constituição da memória ocorre pela formação de conexões entre neurônios no cérebro. Tais conexões são estabelecidas por pontos chamados sinapses. “Apesar de termos visto apenas a regulação durante o desenvolvimento, é possível que a regulação traducional de alguns dos genes identificados ajude a regular a formação da memória, hipótese que deve ser testada em futuros trabalhos”, explica Bengtson.
O próximo passo será entender como exatamente estes RNAs estão sendo regulados e por quais agentes. “É preciso aprofundar nas inúmeras camadas de regulação destes processos para entender os mecanismos que levam a ativar e desativar a tradução destes RNAs nos momentos corretos”, pontua Bengtson.
O estudo foi desenvolvido durante o Projeto Jovem Pesquisador da Fapesp de Bengtson com suporte do CQMED. O Centro de Química Medicinal da Unicamp é vinculado ao IB (Instituto de Biologia) e ao CBMEG (Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética). Ele também integra o Programa Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia INCT, apoiado pelo CNPq, Capes e Fapesp. Em 2017 foi credenciado como uma Unidade da Embrapii (Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação).
ARTIGO:
Érico Moreto Lins, Natássia Cristina Martins Oliveira, Osvaldo Reis, Adriano Ferrasa, Roberto Herai, Alysson R. Muotri, Katlin Brauer Massirer & Mário Henrique Bengtson. Genome-wide translation control analysis of developing human neurons. Mol Brain 15, 55 (2022). https://doi.org/10.1186/s13041-022-00940-9