A molécula já é usada para o tratamento de outra doença, mas ainda requer aprimoramentos, ajuste de dosagem e  redução de custos.

Estudo liderado por pesquisadores da Unifesp e do Centro de Química Medicinal (CQMED) da Unicamp encontrou uma molécula capaz de inibir, em laboratório, a proliferação do parasita causador da doença de Chagas. O artigo foi publicado no mês passado (junho) no Journal of Biological Chemistry. De acordo com o Ministério da Saúde, a dificuldade de diagnóstico e de tratamento tornou a doença de Chagas uma das quatro maiores causas de mortes por doenças infecciosas e parasitárias no país, com média de 4 mil casos por ano nos últimos 10 anos.

A doença de Chagas é uma doença infecciosa febril causada pelo protozoário Trypanosoma cruzi, cujos vetores são os triatomíneos, insetos popularmente conhecidos como barbeiros ou bicudos. A doença é comumente associada a uma parcela da população que vive em condições de habitação precárias, falta de saneamento básico e acesso limitado a serviços de saúde. Se não for tratada, pode causar danos irreversíveis e letais ao coração e outros órgãos vitais. De acordo com DNDi, cerca de 20% dos pacientes interrompem o tratamento por causa dos efeitos colaterais, que incluem intolerância gástrica, erupções cutâneas e problemas neuromusculares.

“As opções de tratamento ainda são muito tóxicas, ou seja, para atacar o parasita, o medicamento acaba afetando outros processos do nosso corpo, gerando os indesejáveis efeitos colaterais”, explica Katlin Massirer, coordenadora do CQMED e autora do estudo.

Uma das alternativas é encontrar medicamentos que atinjam apenas o foco da doença. “A identificação de proteínas-alvo no parasita que sejam relevantes para o desenvolvimento de medicamentos ainda é um desafio de maneira geral. Quando se consideram os protozoários parasitas, isto é particularmente difícil, uma vez que estes têm vias enzimáticas e metabólicas distintas”, explica Massirer.

A primeira etapa nesta busca é validar proteínas que possam ser um bom alvo para o desenvolvimento de moléculas que sejam a base para gerar novos fármacos. No caso da doença de Chagas, o ideal é que seja um alvo capaz de interromper algum processo importante de proliferação do parasita e que seja exclusivo do parasita.

Os grupos da Unifesp e Unicamp vêm estudando a enzima chamada TcK2. “A TcK2 é um novo alvo potencial, dado o seu papel central na fase intracelular do ciclo de vida do Trypanosoma, ou seja, se inibirmos suas funções, o parasita não se multiplica na mesma velocidade”, explica Sergio Schenkman, professor da Unifesp e autor do estudo. O ciclo de vida do T. cruzi alterna basicamente entre uma fase de vida livre com uma fase intracelular obrigatória, de infecção no hospedeiro, quando a multiplicação é mais acelerada.

Para esse alvo, os pesquisadores testaram 379 moléculas inibidoras e apenas duas tiveram potencial de inibir a TcK2. Entre elas, a molécula chamada Dasatinib teve um desempenho melhor na inibição da enzima, provocando a desaceleração da proliferação do parasita em células de cultura, no laboratório. “Para assegurar que a molécula estava agindo na TcK2 nós testamos a Desatinib em Trypanosoma geneticamente modificados, sem Tck2, e a molécula inibidora não teve efeito” explica Schenkman. “Dasatinib bloqueia a proliferação do parasita apenas em células que expressam TcK2, validando que este é o alvo deste composto”, complementa Massirer.

O Dasatinib já é um medicamento utilizado no tratamento de leucemias mieloides agudas e crônicas. “O tratamento é eficaz devido à elevada sensibilidade ao Dasatinib de uma proteína que está alterada na leucemia mieloide. No entanto, nos regimes de dosagem atuais, o Dasatinib não atinge uma concentração suficiente para inibir a proliferação do T. cruzi, logo, são necessários melhoramentos”, explica Schenkman. Ademais, esta droga tem um custo elevado, chegando a 15 mil reais por mês, um valor inacessível a grande parte da população, sobretudo àquela que está exposta ao risco da doença.

Uma vez validado este alvo no parasita e utilizando o Dasatinib como ponto de partida, poderá ser encontrada uma molécula inibidora. Para isto os cientistas pretendem avançar no entendimento de como se dá a ligação entre o inibidor e enzima para então estudar formas de tornar a molécula mais potente e específica. Em seguida, deve-se iniciar testes com animais de laboratório.

Uma possibilidade, segundo Schenkman, é que estes novos compostos sejam úteis para desenvolver uma droga atuando em combinação com outras já existentes. “O uso combinado destas novas drogas poderia acelerar o tratamento, reduzir as doses, os efeitos colaterais e taxas de abandono do tratamento”, isto porque a TcK2 atua no parasita, finaliza o pesquisador.

O estudo foi financiado pela Fapesp por meio de um projeto temático e do INCT CQMED Centro de Química Medicinal de Acesso Aberto e teve parceria de pesquisadores da UNIFESP, Unicamp, Unesp (Araraquara), Drug Discovery and Evaluation Unit, Universidade de Dundee (Reino Unido), Charles University (República Tcheca) e Universidade Federal de Minas Gerais.

O artigo Identification of inhibitors for the transmembrane Trypanosoma cruzi eIF2α kinase relevant for parasite proliferation pode ser lido em https://doi.org/10.1016/j.jbc.2023.104857.

FOTO: Células de coração infectadas com Trypanosoma cruzi. A estrutura maior em azul é núcleo da célula e as menores são os núcleos das células do parasita. Em vermelho, o citoesqueleto da célula cardíaca. Crédito: Leonardo Looch e Sergio Schenkman.